O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, Lei Federal nº 8069 de 13 de julho de 1990, depois de três décadas de existência e reconhecimento internacional como um dos instrumentos legais mais avançados na defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes, aguarda sua vez numa fila das políticas públicas e dos direitos sociais não efetivados pelo Estado brasileiro.
O ECA regulamentou principalmente o Artigo 227 da Constituição de 1988 que prevê: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”.
Esta prioridade absoluta conforme determina o ECA, deveria expressar-se na proteção e socorro, no atendimento dos serviços públicos, nas políticas públicas sociais e, essencialmente, no financiamento das políticas pelo Estado brasileiro em todos os níveis.
Basta analisar os dados de planejamento e execução orçamentários de todas as esferas para perceber que, esses dispositivos legais no contexto da sociedade de mercado continuam sendo “letras mortas” apesar da retórica em torno deles. Tanto o ECA como a Constituição não são respeitados na proteção da infância e da adolescência no Brasil.
Estudos da Auditoria Cidadã da Dívida mostram que o Orçamento da União, executado em 2019 foi de R$ 2,711 trilhões. Deste valor R$ 1,038 trilhão ou 38,27% foram gastos com pagamento da dívida pública constituída por vários contratos comprovadamente questionáveis conforme constatado pela CPI da Dívida Pública em 2011. Enquanto isso, todos os investimentos em saúde, educação, assistência social, direitos de cidadania, cultura, desporto e lazer e habitação somados foi de R$ 303 bilhões ou 11,18% do orçamento.
Em São Paulo, o artigo 255 da Constituição Estadual prevendo que o “estado aplicará, anualmente, na manutenção e no desenvolvimento do ensino público, no mínimo, trinta por cento da receita resultante de impostos, incluindo recursos provenientes de transferências.” nunca foi cumprido.
Por este desrespeito à lei maior de nosso estado, entre 2007 e 2019, os governos do PSDB deixaram de investir R$ 84 bilhões na educação, conforme análise de informações disponíveis no Sistema de Gerenciamento da Execução Orçamentária – SIGEO. O dinheiro foi usado para pagamento de aposentadorias e pensões, num flagrante desvio de finalidade da manutenção e desenvolvimento do ensino.
Estas decisões políticas dos governos e seus apoiadores nos parlamentos se refletem nas condições de trabalho e estrutura das escolas. O Relatório do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo de 2018, em relação à estrutura da educação básica, apontou que um terço das escolas de anos iniciais do ensino fundamental (1º ao 5º ano) não possui bibliotecas ou sala de leitura e metade delas não têm qualquer espaço para projeção de imagens. O documento apontou ainda que no conjunto das escolas de ensino fundamental e médio no estado, 82,4% não possuem laboratórios de ciências e 20,6% não têm laboratórios de informática.
Outro contrassenso recente foi durante a pandemia o governo exigir que, para continuidade das atividades educacionais, alunos e professores dispusessem de equipamentos e estruturas nas suas casas, que ele nunca garantiu integralmente nos ambientes escolares. Aliás, o governo de São Paulo não oferece sequer as condições básicas de manutenção e limpeza das escolas, obrigando as comunidades escolares a arcarem com estes custos.
Assim a prioridade absoluta para proteção de crianças e adolescentes determinada pelo ECA segue sendo ignorada pelos governos, que para responderem a ausência ou insuficiência de políticas públicas sociais, institucionalizam intolerância e violência.
Nestes governos, as instituições públicas, em particular as polícias, atuam com extrema violência contra adolescentes e jovens das comunidades submetidas à pobreza, sobretudo contra a juventude negra, protagonizando agressões, torturas e assassinatos, como se pode constatar nos inúmeros casos que vêm se tornando públicos pelo país afora.
Nessas três décadas de existência, é incontestável a importância do ECA, como parâmetro de superação de um passado de completa ignorância de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e portanto, como parâmetro da luta pela infância e adolescência com vida e sentido. Não obstante, é preciso reconhecer que seus dispositivos, sobretudo o financiamento das políticas públicas sociais, ainda estão totalmente submetidos a uma política econômica de mercado e que prioriza abastados e sonegadores.
Sem decisões que mudem isso em todas as esferas dos governos, o Brasil continuará fazendo no máximo a política do possível em relação às áreas sociais e aos direitos humanos de proteção integral à infância e à adolescência.
Paulo Bufalo